segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A luz da geladeira (2015)

Mercúrio, esse é o nosso planeta. Eu estou numa cadeira de praia, molhado, fazendo palavras cruzadas. A grama bate no joelho. Aqui era o mirante do velho acampamento, onde nas noites que não tinham luar nós contávamos histórias de fantasmas em volta da fogueira. Debaixo do penhasco de quarenta metros na nossa frente fica o oceano, indescritivelmente azul. O verão tem gosto de pão com manteiga. Eu sou apaixonado por Enrietta. Quando eu estou com ela tudo é feliz que nem banho de mangueira e cachorro-quente. Pedro, seu irmão mais novo, vai pegar cervejas na kombi. Ela está deitada perto de mim, se secando no sol. Nas costas dela as tatuagens se misturam com os estigmas. Ela também tinhas marcas de pregos nas mãos, mas essas ela não escondia, pareciam só queimaduras. O vento sopra o cabelo dela, que é da cor de uma supernova de areia, e cobre as cicatrizes. Ela olha pra mim e ri.

Vou até a piscina, que tem um metro e meio de fundura. Vários azulejos manchados de cloro estão quebrados. O estômago ronca. Ah é, tenho um sanduíche de carne moída na mochila. Eu, Thiago, estudo há seis anos na faculdade de Letras, e já faz um tempão que trabalho como Assistente de Lexicógrafo. Lexicógrafo é aquele que exerce como ofício a lexicografia, que é a ciência de fazer dicionários. Minha principal ocupação, no entanto, deve ser jogar videogame. Jogar videogame, bater e fumar. Pego o sanduíche na mochila, e um boné também. É um boné vermelho com um desenho branco de algum time de baseball costurado nele. Olho pra cima e vejo um balão meteorológico encardido no céu vede-água, a pelo menos uns 50 km da gente.

Quando volto Pedro está tentando acender a churrasqueira da marca "Sonho americano". Porra Pedrinho, to morrendo de fome. Deixa que eu faço isso, disse Enrietta, pouco antes de acender a churrasqueira.

A Kombi é azul-chinelo por fora e os bancos são de couro avermelhado. O porta-malas está cheio de caixas de salsicha, um Banco Imobiliário, que ta faltando peças, sacos de dormir, enfim, essas coisas. No porta-luvas tem um canivete, munido de uma faca sem fio, uma chave de fenda Philips, uma chave Whinchester, uma faca de manteiga e um abridor de garrafas. Lá também tem uma lanterna, uma revista de mulher pelada e as chaves.


Quando chegamos eu fui no banheiro dos meninos e vi três números um, um atrás do outro, rabiscados em uma das portas. Os três uns precediam dois pontos e um sinal tironiano. Por que? Eu lembro que "&:" era o código de área que a Western and Brazilian Telegraph usava em 1874. Dois pontos queria dizer Rio de Janeiro, três era Santos e um Petrópolis.




Não da pra ter rádios em Mercúrio, sabe, porque a interferência seria muito alta por causa das Torres. Elas servem pra captar a energia do campo magnético do planeta, que é umas trezentas ou quinhentas vezes o da Terra, e a transformam automaticamente em eletricidade. Foi o Tesla quem inventou elas, cinquenta anos atrás. Tem duas dessas nas montanhas, ao longe. Elas ainda funcionam? Água, atmosfera... essas coisas só existem por causa das Torres. Elas são o pulo do gato. Estupidamente baratas, fáceis de construir e de quebra ainda dão energia inesgotável. Mas acredite em mim, a vida em outro planeta é como morar num bistrô. Não é tão ruim, é até que boa, mas continua sendo um bistrô.

E já vou avisando: Esqueça a metalinguagem. Aqui não tem essa de "leitor" ou "autor", essas coisas não existem. O que existe é o Pedro, a Enrietta e eu. Essas coisas que você está lendo não são só um monte de palavras. O nome disso é dicionário.

É impossível distinguir uma boa história de fantasia ou de ficção-científica de crianças correndo descalças na rua. Isso é uma lei da literatura, e isso quer dize que ela se aplica a todos os casos, tirando algumas exceções.





Disquei ①, ①, ①.

Uma das coisas que "a luz da geladeira" é, dentre tantas, é o nome de uma sociedade secreta. Foi o que descobri em minha longa conversa com o Imperador Dom Pedro II. Explico: O primeiro par de telefones do Brasil foi instalado em 1855, secretamente, a mando do Imperador, e ligava a Quinta da Boa Vista, o palácio real, à lendária "Casa de Carnes Colonial", seu prostíbulo predileto. Dai em diante as linhas telefônicas brasileiras foram estendidas, emendadas e remendadas incontáveis vezes, em outras palavras, elas nunca foram completamente substituídas.

No fim eram só duas latinhas, uma de leite e a outra de molho de tomate, ligadas por milhares de cadarços amarrados um ao outro, atravessando o tempo e a vida láctea. Eu só precisava do número, e eu tinha.

Por isso que todo telefone, pager, fax e celular está indiretamente e inevitavelmente ligado ao telefone da Casa de Carnes Colonial.



Eu queria descobrir tudo o que tinha pra ser descoberto sobre a luz da geladeira, e eu tinha bastante tempo livre pra isso. Infelizmente meus recursos limitavam-se  uma piscina porcamente mobiliada, meio sanduíche, um lápis e uma linha direta pro bordel do Dom Pedro II. Eu precisava estar preparado se quisesse partir numa aventura. Fui procurar itens para botar no meu inventário. Encontrei Enrietta dormindo no pé da única árvore no mirante, e Pedro lustrando seu estilingue, apelido pra uma espingarda remington calibre 64, na sombra da mesma sombra. Ele carregou a arma, apontou pro balão, atirou e errou. O estampido acordou sua irmã, que tomou seu brinquedo. Numa centena de quilômetros, eu, ela e ele fomos os únicos a ouvir o estampido.




Outra versão, originalmente de agosto de 2013

O planeta é Mercúrio. Estão à mesa Orson e Carter, jogando cartas diante da lareira. Neva terrivelmente lá fora. A sala é pequena e confortável, mobiliada de luminárias e caças empalhadas, com carpete azul, livros na estante, papel de parede listrado e um retrato da senhora Clarke sobre uma mesa lateral. Um impala preto aterrissa no quintal da frente. Penpal¹, o mordomo de Monte Sul, cujas habilidades frequentemente se equiparam ao poderio pagão das divindades hindus, de longe onisciente, insigne enxadrista e mestre dos suflês, atende a porta. Surgem Professor Rebimboca e o Inspetor Schultz, o primeiro em terno transpassado, de perfeito corte e caimento, e o segundo num par de botas clark kent de couro autêntico, milimetricamente engraxadas pelo melhor robô-jornaleiro de Bent Street. Penpal pendura os casacos e se teletransporta de volta para seus afazeres.

O Inspetor irrompe pelo chalé de madeira, irreverente, elegante e manco de uma perna ele se senta na exata poltrona junto ao fogo, onde faz reverências e pendura o chapéu. O bigode dispensava demais formalidades.- É com prazer que apresento-lhes Professor Rebimboca, de Banana ba Rustemburg, meu mais novo companheiro de viagem.

- Um heresiarca de Umqombothi, em minha própria casa? - Carter verteu em grande entusiasmo, e cumprimentou-o com sincera admiração. Em contrapartida Orson, desentendido dos estudos semíticos do binômio de Neilman e um mero principiante em matéria de hebraico e mitologia clássica, estendeu-lhe um breve e prosaico aperto de mão, o qual o cientista do leste europeu respondeu com seu mais amarelo sorriso. Muito prazer em conhecê-lo, Professor. Meu nome é Walt Adamastor Wells, mas pode me chamar de Carter. Sim, confesso que já fui um fã dos The Creamberries. Por favor, queira sentar-se. Devem estar famintos! Mas pra onde foi Penpal, aquele paspalhão quadrático de meia-tigela?

Porn Flakes (2015)

John Marlboro mora num aquário.
O aquário foi desenhado por Ginger Ale, o arquiteto louco, num surto psicotrópico satânico na discoteca Discworld Copacabana, em 81. Diz a lenda que Ale desenhou o aquário numa bíblia de motel com uma caneta bic azul que o Capiroto roubou de um bingo de uma quermesse.

Naquele ano o clube de ficção científica de Coleridge College inventaria a famosa máquina de singularidade, chamada Singularizador (do original Singularityzator), ou só Frankie. O que o Singularizador faz é tocar "All Along the White Tower" nas cordas da Teoria das Cordas com a mão esquerda, diferente de seu antecessor, o Singularizante, um protótipo que fazia a mesma coisa com a direita, que é a mais forte mas da menos firmeza.

O primeiro teste com o Singularizador deu-se numa casa de campo em Fenchurch; Era verão e na época a Lambada tinha chegado com tudo na terra da Rainha. Ginger e alguns amigos da faculdade ligaram o Singularizador numa piscina olímpica abandonada, e no apertar de um botão vermelho quatro milhões de litros d'água transformaram-se instantaneamente numa grande e molhada cor azul. Depois telefonaram pro Salsicha, o baterista da turma, em sua loja na cidade, para avisá-lo de que o experimento tinha sido um puta sucesso. Salsicha passou no drive-thru do Porns e encheu a Combi de cerveja quente, hambúrgueres, ácido e um vidro de ketchup, pela bagatela de 24.99£, e caiu na estrada. Se seus cálculos estivessem corretos em exatamente uma hora dariam início o churrasco.

Reembaralhando a ordem natural das coisas para um determinado fim, como por exemplo, se respirar debaixo d'água. Outras aplicações incluem também, mas não somente: Assistir televisão, fazer um sanduíche, lavar pratos, jogar ping-pong e até tomar banho, tudo isso debaixo d'água.
Descobriu-se num dado momento que do outro lado da rua havia um antigo colégio de freiras, então Ginger e os rapazes concluíram que talvez não fosse uma má ideia convidar as meninas pra uma festa na piscina.

Há quem diga que o Tinhoso em pessoa teria supostamente aparecido por lá, só de passagem, e que foi ele quem puxou a conga. Um dia essa história viria ser recontada num episódio proibido e perdido de Doctor Who, intitulado "Aquela vez em que as quarenta e uma noviças de Fenchurch Catholic House dançaram a dança proibida debaixo d'água", escrito e dirigido pelo quase ex-beatle Terry Gilliam. Também jogaram banco imobiliário, mas não até o final.

Isso não foi muito antes de um certo homem se interessar pelo projeto do aquário. Esse homem era  Fish Switzer, primeiro e único herdeiro do conglomerado Switzer de Abridores de Lata, que agora era o conglomerado Switzer de Arquitetura Aquática & Enlatados. Ginger reuniu os melhores arquitetos, massagistas tailandesas e cientistas de foguete que conhecia em seu laboratório numa praia secreta em Acapulco, de onde só sairiam quarenta dias e quarenta noites depois, com a planta definitiva do que ficaria mundialmente conhecido como o Um Aquário, da Aquário Incorporated.

A inauguração aconteceu num suntuoso cassino de Las Vegas, na suíte presidencial Royal Pinball White House Straight Flush, que foi especialmente escolhida por causa do "Flush" no nome. Todos estavam lá: Frank Sinatra, os irmãos Winchester, Jackie Chan, Iggy Pop, o Aquaman, aquela filha do Elvis, o Sting, o Dream Team da NBA, Rosemary Harley D., Steven Spielberg, o E.T., Lucky Strike e seu arqui-inimigo, Clinteastwood Marlboro, entre outros.

Há quem diga que o Exu também fez uma aparição na Satright Flush naquela noite. Ele foi visto no canto do salão principal, sentado numa puff perto da lareira, bebendo uma lata de coca-cola diet e fumando um charuto cubano infernal.

A suíte tinha um elevador panorâmico próprio que saia o jardim no térreo e subia pelos seis andares até o terraço, onde o Singularizador havia sido cuidadosamente instalado. O apartamento foi decorado por Cinnamon Keane, O Decorador, inspirado em suas viagens pela Índia em sessenta. A renomada Cheff

O jovem repórter Orange Muffin disfarçou-se de garçom e registrou cada instante da cerimônia em sua filmadora com lentes especiais de mergulho. Ele ainda não sabia, mas vinte anos depois produziria o aclamado documentário indicado ao Oscar "Smoke On The Water", 110 min., ING 2.0 Stereo/Mono, COR, sobre a lendária noite em Vegas e a disputa das famílias Strike e Marlboro pelo trono de ferro do Reino do tabaco. O filme conta com legendas em espanhol e pode ser facilmente encontrado em qualquer locadora underground ou no website intheflush.com, desativado desde 1999.



Clinteastwood apostou todas as suas fichas numa partida de Banco Imobiliário contra Lucky Strike, Tony Montana e o vice-presidente Rockefeller na suíte Straight Flush, Las Vegas, e perdeu, entregando todas as indústrias Malrboro ao controle de Strike, numa jogada que ficou conhecida como "The Empire Strikes Back".

Big Baseados e McProstitutas Felizes.


John divide um quarto com o Marajá Jack, filho de um jovem Príncipe indiano com a deusa da colheita. John também tem um peixe de estimação, que ele deixa solto pela casa. A quitinete é um Aquário modelo 2.000, com filtro pra cigarros e mesa de ping pong embutida. John dorme no beliche de baixo.
Na cozinha, que coincidentemente fica no mesmo cômodo que o quarto, a sala de estar e a laje, está Carl, o robô anos 80, cozinhando o café da manhã.

BOM DIA, VIETNÃ! Como passou a noite, cara-pálida?, diz Jack.
Huum, eu adoro o cheiro de bacon canadense pela manhã!

Carl imprimiu sua fala num papel de eletrocardiograma. Jack arrancou a folha, onde lia-se "bom dia!" em letras amigáveis. Em seguida uma segunda mensagem foi impressa, "Sentem-se, vou fazer panquecas!".

Tinha um jornal em cima da mesa. A manchete era sobre círculos gigantes em milharais.
Jack tem alguns superpoderes, que só funcionam com limões e as vezes com laranjas muito, muito azedas. Sua irmã mais velha, Macbeth Marani, ex-namorada de John e atual miss Universo, foi agraciada pelos deuses com o dom da fertilidade: Pariu em vinte anos mais crianças do que vinte mulheres paririam em quarenta, fato que é ainda mais surpreendente se você levar em conta que ela ainda não menstruou pela primeira vez e provavelmente nunca vai. Jack vestiu uma camiseta do Tears For Fears e depois a jaqueta preta com o desenho de súcubos das sailor moons nas costas.

Hey Johnny, vou fazer um bate-volta na Indonésia, não me espere acordado.
Valeu pelas panquecas, Carl!
John arrancou a folha do robô.
"não tem de que! :-) "
Hasta la vista, baby!

E se teleportou.

Alguém toca a campainha.

Quincy é a garota não tão peituda que mora no apartamento da frente. Quincy tem esse nome porque seu pai era o fã número 1 da telessérie Quincy M.E., estrelada por Jack Klugman, que também fez alguns episódios de Além da Imaginação no começo de 1960, como "A Passage for Trumpet", em que ele interpreta um trompetista alcoólatra que tenta se matar e sem querer vai parar num mundo congelado em que a única coisa que se move é ele mesmo. A pequena Quincy trabalha como colorista na revista Pegging Tales. Seu sonho é um dia cruzar a América Latina de motocicleta, igual naquele filme.

Quincy está de pantufas, cueca e roupão diante da porta do apartamento 43 com uma caneca fumegante numa mão e uma revista de pesca velha debaixo do braço. Uma folha de eletrocardiograma escorrega por debaixo da porta. Nela está escrito "bom dia, Quincy! sinto muito, mas John e o Marajá não estão :-( agora vá embora!"

Anotações desconexas (2018)

Estamos sendo perseguidos por algo que não sabemos o que é. Precisamos chegar em casa, antes que nos alcance.


-Um peixe.
-É.
-Deixa eu ver se eu entendi direito - - Você foi dar um mijão, e tinha uma peixe na sua privada?


Mas antes, o cenário. A Terra, o Homem, a Luta. Começando pela terra então. Topografia, vegetação, essas coisas. As raízes revolveram o concreto e o asfalto, onde tinham árvores dos dois lados da calçada agora não passam mais carros, e nos matagais das praças dos bairros não passam pessoas (mas tudo bem, porque não tem mais pessoas nem carros). Vivemos um horário de verão extra-oficial pra aproveitar a luz do dia.

Começou ali, no riacho.


Um dia a barca quebrou no meio da represa. Mas ninguém protestou nem nada. Ela continua lá.
No Seleta tem uma ou outra fazenda bem grandinha.



-A rua da minha casa era um Rio?

-Era não. É.

-Deixa eu ver essa porra.

Ribeirão dos Couros. Corre por toda a Kennedy, depois do cruzamento com a Piraporinha, ele faz as divisas de SBC, SP, e Diadema, depois passa pelo Jorda, a Paulicéia, Taboão... caraca, até onde era a casa da minha vó. E desagua no Ribeirão dos Meninos, que é da onde veio o Rudge, e lá faz a divisa entre SP, SBC e São Caetano.

-É ele que provoca enchentes nas pistas da Anchieta, e na fábrica da Mercedes.

-E no Silvina também, Almir.
-Jurubatuba, Faria Lima, o Paço, tudo...


-Será?


-Não tem mais fábrica. Casa. Ninguém.

-Desde quando eles tem jogado essa porra no esgoto?
-
-Que nem no Batman Begins.
-Exatamente como no Batman Begins.


-Quando alagar, detonamos as galerias.
-Ta... como em Batman Dark Knight Rises?
-Ok, certo, eu sei o que isso parece, mas realmente é só uma grande coincidência.


O Caboclo dormiu por dezoito anos. Quando for a hora ele vai acordar.

Piscina (2017)

Qual a diferença entre uma cafeteira e um robô que faz café? Não que essa história seja sobre isso. Não, senhora. É sobre uma árvore e uma mesa debaixo dela.

Pam não sabia nadar, mas prendeu a respiração, tomou distância, correu e pulou. Era frio como julho, escuro como descer escadas de madrugada. Quando emergiu do outro lado, em uma planície de grama alta sob um céu de brigadeiro, a água era morna, e o vento também. Subiu pela escadinha e desabou. Acordou com o sol no olho e a barriga roncando. Abriu a mochila ensopada, e desenrolou o pão com carne moída enrolado várias vezes em papel filme. O celular tocou. Tirou ele de dentro do tapower. Era um SMS.

Enquanto isso eu e um velho amigo aprendíamos a dirigir na Via Anchieta. Cento e vinte quilômetros por hora. 

Escrito em out 2014


O planeta é Mercúrio. Dentro do chalé no alto da colina estão Orson e Bookman, jogando buraco de frente pra lareira, e neva terrivelmente lá fora. Um impala preto aterrissa no quintal. Penpal, o mordomo de Monte Sul, cujos superpoderes se equiparavam aos das divindades hindus, onisciente, precognitivo, insigne enxadrista e rei dos suflês de abóbora, atende a porta. Um guarda-chuva se fecha ao que entram em cena dois personagens: Professor Rebimboca e o Inspetor Schultz, o primeiro em terno transpassado de preciso corte e caimento, e o segundo num par de botas clark kent de couro, engraxadas por um robô-jornaleiro em Bent'Street. A sala pode ser descrita pelo carpete azul escuro, o papel de parede listrado, inúmeras luminárias, caças empalhadas e uma estante ao pé da escada com talvez um par de livros que ninguém mais lê e um retrato da sra. Trafficlight.
Penpal pendura os casacos e se transporta de volta a seus afazeres. O Inspetor lança o chapéu sobre o cabideiro e se senta na poltrona junto ao fogo. O bigode dispensava formalidades. Disse "Apresento-lhes Professor Rebimboca, de Banana ba Rustemburg, meu mais novo companheiro de viagem".

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Fake Tales of São Bernardo

Puxo as persianas, arrasto a porta de vidro e saio. Ta sol, mas não ta quente. A varanda dos fundos da casa do Caio dá direto pro deserto, sem cerca, sem muro, nem portão, só a colina mesmo. Cruzando ela chego na praça cortada pela trilha que leva da rua da feira até uma travessa da Kennedy. No sétimo ano tive que fazer um trabalho sobre "pós-fordismo", que acabou sendo uma cartolina azul-mendigo com fotos imprimidas de Detroit e parágrafos gigantes com letra pequena. Sexta, na última aula de geografia do ensino médio, teve apresentação de um trabalho com o mesmo tema, só que as fotos no cartaz eram daqui mesmo. É que de 90 pra cá, principalmente depois que as montadoras fecharam as portas, quarenta porcento das pessoas foi embora, e a mesma região da onde saiam 9 de 10 carros dirigidos no país, em 2011 é isso ai que eu falei: um deserto.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Se vacas malhadas dão doce de leite

Estamos nessa época do ano em que anoitece cedo e amanhece tarde que eu nunca entendi direito. Só eu e o velho Scooby, por três dessas longas noites. Garotas não são permitidas.

Botas afundando nas folhas secas. Estômago dá uma roncada inominável. É, o cheiro do assado deve estar animal. Acho que já enchi o saco dessa porra.

Ponto infinitesimal no canto do olho. Alavanca pra baixo desliza sobre o trilho até bater no final, solta, puxa a correia e estala. Ou pelo menos são esses os sons, que dão a sintaxe de engatilhada. Espera... Pulso, tambores, tambor. Respira, silêncio, assovia. Fecha o olho direito, prende a respiração... e puxo.

Revoada de pássaros.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Outra represa


Fui mijar na cerca. Abaixo a cueca, um samba-canção azul-escuro com desenhos de bandeiras piratas, e começo a botar três litros de refrigerante pra fora, debaixo da lua cheia. O vento da represa uiva no meu ouvido, e sinto o cheiro dos hambúrgueres. 
Joelho direito ralado. Sempre esteve, eu acho, desde a primeira vez que cai de bicicleta. Ele cicatrizava há tempo de eu ralar de novo, por qualquer outro motivo. 

Na varanda, as coisas continuam como costumavam ser. Caio engordurando a camiseta do uniforme na churrasqueira, Almir lendo um mangá em que garotas têm pintos, Bob afinando o violão, e o Rodolfo saindo da cozinha com uma garrafa de Itubaína debaixo dos braços magrelos. Estamos na Chácara do Almir, ou melhor, do pai do Almir, o tio Zézinho, pra onde a gente vêm nas férias desde o primeiro ano. Chamamos ela de a Chácara no Fim do Universo, mesmo ela ficando em Ibiúna, que é só metade do caminho. Contávamos histórias de terror. Caio contou a do verão da lata, e alguns de nós contamos a nebulosa lenda do massacre de Macaré (Em 88 os militares estavam atrás de um artefato de valor nacional e histórico inestimáveis, que eles perderam num assalto. Sem qualquer relação com isso, em outubro, a inteligência brasileira descobriu que a união dos estudantes estava escondida na fazenda Macaré, na estrada da Cachoeira, pro trigésimo congresso clandestino da UNE. Quando os PMs da cidade e de Sorocaba chegaram lá, debaixo de uma chuva torrencial, pensando que seriam uns trezentos, quatrocentos maconheiros, descobriram que eram mais de mil, armados até os dentes. A merda bateu no ventilador quando as trombas d'água caíram do céu. Chumbo, sangue e lama, tudo por causa dos pãezinhos dos quais os moradores sentiram falta nas vendas e mercadinhos. Não tivessem acabado os pães, não tivessem os moradores avisado a polícia, o artefato, que acabou ali por uma desconhecida sequência de roubos, ou só por acaso, ele não teria se perdido para sempre). 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

2001 2

Sangue e Sal
André de Jesus

Joelhos ralados de quem começou a andar de patins no final de semana. Mesmo sem jeito era melhor se apressar porque a fila do mercado vai ta longa, e ainda tinha que botar tudo no congelador, e esse tudo precisava gelar até as sete, quando mais ou menos iam chegar. Meninos salgado, meninas doce, e ela as bebidas, como no colégio. O interfone tocou, eles subiram. A quitinete nunca esteve tão cheia. Mai, Juca, Fred e Mônica, que trouxe a Aninha, de seis anos. Google, como abrir uma garrafa sem saca-rolhas? Ninguém vestia mais sapatos, o armário não tinha cabides. Felizmente, sobravam parafusos, da mesa de centro de madeira reciclada que jamais seria montada. Colocaram um LP do Arctic pra tocar. Beberam, beliscaram queijos comprados pela internet. Abriu seu presente: um mimeografo. Deixaram a mesa arrumada, e as 11:49 desligaram o forno e desceram, só pra ver os fogos. Turistas de chinelos, camisetas brancas e oculozinhos de plástico com dois zeros no lugar das lentes, tal qual suas versões holográficas projetadas por smartglasses, embora igualmente bregas. Tentou se lembrar da última vez que viu um arrastão e não conseguiu, o que devia ser algo bom. Sentaram numa mesinha de ferro debaixo das palmeiras entre a areia e o calçadão. A noite era quente, o vento, fresco e salgado. Tirou uma foto pro Twitter. Merda, acabou o 3g. Foi no quiosque pedir a senha do wi-fi, e uma água de coco, por favor. O garoto no balcão tentou dar ideia, ela mostrou a aliança. Porque ainda andava com aquilo? Quando voltou, viu uma revistinha sobre a mesa. "Dragão 2000". Qual é Fred, achou num sebo? Nem, tão relançando. Isso não é nada, disse o Juca, vocês viram a Playboy? Eles vendem revistas em branco, você imprime a edição que quiser em casa. Fred tirou do bolso um dadinho vermelho de vinte lados e botou sobre a revista aberta. Esse não, esse é aquele lá, de sempre. Por um instante do tamanho de uma respiração, os substantivos a sua volta pareceram indistinguíveis daqueles que formavam as frases do seu universo na adolescência. Quis saber quando foi que perdeu o fôlego, e se, mergulhando bem fundo, poderia encontrá-lo de novo. 10, 9, 8, vai ser como se você não tivesse tido eu, mamãe? Ai Aninha, para de besteira, toma o seu suco. 3, Mai, você botou silicone?, 1...

sábado, 30 de novembro de 2013

as vacas do Oriente

Uma improvável reação química no refrigerante
por André J. R. Torres.

  O relógio bate doze vezes, indicando que seu programa favorito já vai começar. Você apaga as luzes, ajusta o aparelho de televisão e se posiciona logo diante da tela, sentado no tapete. Não demora muito para surgir uma porta de madeira. Atrás dela está um homem de meia idade bem trajado com o cabelo penteado, o Apresentador, e ele o conduz para sua próxima história.

domingo, 10 de março de 2013

de tinta e aritmética

Quatro Casas Decimais
por André J. Torres

Chovia sobre os pés de Isaac. Chovia por toda Céu Azul. Óleo ordinário estalava na panela sobre o fogareiro. Fuligem escapava para a atmosfera estéril. Isaac vestiu o macacão cinza e bebeu seu café sem gosto. Devia ser quarta, devia chover por toda a Céu Azul. Passava das nove, por certo. Gotejava. Sacou o relógio de bolso e constatou que de fato passava das nove. Deu mais um gole, ralo, frio, e sem gosto. Outro e mais outro. Chovia, o espaguete estalava e bombas foguete se incendiavam do outro lado do Pacífico. No porto da frente fizeram soar o apito. Olhou o mar pela persiana. Couraçados flutuantes cruzavam o oceano turvo em sacrilégio de diesel e gás à santíssima trindade da física newtoniana, desafiando as leis da inércia e gravitação numa gigante blasfêmia de aço voador. 
Serviu-se do macarrão. Chovia. 

sábado, 9 de fevereiro de 2013

o submarino espacial

Dezoito Libras Redondas
André de J. Torres

As palavras finais de Leonard Snicket não soaram como planejara. Ao contrário, produziram efeito inversamente oposto a suas expectativas. Talvez um súbito erro de crase, ou quem sabe um trágico desvio de pontuação. É fato apenas que no dia Azul Escuro do ano Abóbora, precisamente as quatorze horas do século Constantinopla, o submarino espacial ao comando do Capitão Leonard Snicket desapareceu misteriosamente nas profundezas inexploradas da galáxia oriental. Na Terra nem o mais míope dos cartógrafos encontrou nos históricos da telemetria qualquer pista que apontasse o paradeiro da SS Horse W. No N., suspensa estática no vácuo silencioso do outro lado da Criação.

antropologia hipotética

Uma História sobre os Grampeadores
André J. Torres

Imagine então que em algum universo por ai, por uma incrível ironia do destino, a humanidade convencional não desenvolveu os grampeadores. Pois bem. A mecânica quântica muito diverge sobre o desvio padrão dos almoxarifados e suas possíveis implicações exponenciais na história clássica da civilização. Contudo uma vertente budista da antropologia hipotética presume estatisticamente que a falta de grampos no decorrer dos séculos desencadearia, por fim, a completa destruição da democracia, do cristianismo e dos escritórios de advocacia, condenando o Império Galáctico a uma idade das trevas de anarquia e barbárie por quatrocentas gerações, além de duas a quinze guerras termonucleares. 
Demais pesquisas prosseguem em andamento.
E o que aprendemos com tudo isso? Absolutamente nada. Boa noite.

atômico factal

A Chácara no Fim do Universo
Minhas Férias com os Caras

Anoitece no fim do universo. Em volta do fogo estão os seis escaramuçadores, teóricos escafandricos, banhados nos deflectos lunares da segunda-feira. O dedilhar das cordas evoca a canção, despertando os espíritos espaciais da grama molhada. Cores invisíveis dançam sobre a fogueira. Anoitece. Ao longe o inominável espreita, atômico factal, silencioso por de trás das cercas, condenado a vagar até o fim da eternidade.
As últimas folhas de papel desaparecem nas labaredas. Os bandeiras se levantam em direção a cabana no topo da escada. Hambúrgueres? Pensavam. Miojo e pipocas.
Amanhã jantamos hambúrgueres.

A criatura virou de costas e retomou sua caminhada pela estrada noturna. Calculou uma inequação ou duas e deixou de existir. O miojo cozinhava na panela. Anoitecia.

a seleção artificial

Uma História sobre os Mosquitos
André J. Torres

Era uma noite quente de primavera, e como qualquer noite quente de primavera os mosquitos conspiravam em mistério.
"MALDIÇÃO! Por que diabos existem os mosquitos?!”, dizia Johnny Boy.
"Está bem, pequeno. Vou contar-lhe uma história sobre os mosquitos", respondeu Uncle Darwin com um pigarreio e uma xícara de chá.

"Há muito tempo atrás havia dois tipos de mosquitos: Os que existiam, e os que não existiam. E assim, como reza a Seleção Natural... – Os olhos de Uncle Darwin pareceram brilhar por um instante ou dois. Continuou – Os mosquitos que existiam eram, naturalmente, melhor adaptados ao ambiente, e portanto se reproduziram e tão logo perpetuaram os genes da existência pelo planeta. Fim”.
“E é por isso, Johnny Boy, que não somos picados por mosquitos que não existem". O velho naturalista apagou as velas e deixou o quarto.

"Eu odeio você, Uncle Darwin", concluiu Johnny Boy em pensamento.
“Eu desejo que você queime no inferno”.

Mais tarde naquela noite o pequeno Johnny teve pesadelos Lamarckistas.