segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A luz da geladeira (2015)

Mercúrio, esse é o nosso planeta. Eu estou numa cadeira de praia, molhado, fazendo palavras cruzadas. A grama bate no joelho. Aqui era o mirante do velho acampamento, onde nas noites que não tinham luar nós contávamos histórias de fantasmas em volta da fogueira. Debaixo do penhasco de quarenta metros na nossa frente fica o oceano, indescritivelmente azul. O verão tem gosto de pão com manteiga. Eu sou apaixonado por Enrietta. Quando eu estou com ela tudo é feliz que nem banho de mangueira e cachorro-quente. Pedro, seu irmão mais novo, vai pegar cervejas na kombi. Ela está deitada perto de mim, se secando no sol. Nas costas dela as tatuagens se misturam com os estigmas. Ela também tinhas marcas de pregos nas mãos, mas essas ela não escondia, pareciam só queimaduras. O vento sopra o cabelo dela, que é da cor de uma supernova de areia, e cobre as cicatrizes. Ela olha pra mim e ri.

Vou até a piscina, que tem um metro e meio de fundura. Vários azulejos manchados de cloro estão quebrados. O estômago ronca. Ah é, tenho um sanduíche de carne moída na mochila. Eu, Thiago, estudo há seis anos na faculdade de Letras, e já faz um tempão que trabalho como Assistente de Lexicógrafo. Lexicógrafo é aquele que exerce como ofício a lexicografia, que é a ciência de fazer dicionários. Minha principal ocupação, no entanto, deve ser jogar videogame. Jogar videogame, bater e fumar. Pego o sanduíche na mochila, e um boné também. É um boné vermelho com um desenho branco de algum time de baseball costurado nele. Olho pra cima e vejo um balão meteorológico encardido no céu vede-água, a pelo menos uns 50 km da gente.

Quando volto Pedro está tentando acender a churrasqueira da marca "Sonho americano". Porra Pedrinho, to morrendo de fome. Deixa que eu faço isso, disse Enrietta, pouco antes de acender a churrasqueira.

A Kombi é azul-chinelo por fora e os bancos são de couro avermelhado. O porta-malas está cheio de caixas de salsicha, um Banco Imobiliário, que ta faltando peças, sacos de dormir, enfim, essas coisas. No porta-luvas tem um canivete, munido de uma faca sem fio, uma chave de fenda Philips, uma chave Whinchester, uma faca de manteiga e um abridor de garrafas. Lá também tem uma lanterna, uma revista de mulher pelada e as chaves.


Quando chegamos eu fui no banheiro dos meninos e vi três números um, um atrás do outro, rabiscados em uma das portas. Os três uns precediam dois pontos e um sinal tironiano. Por que? Eu lembro que "&:" era o código de área que a Western and Brazilian Telegraph usava em 1874. Dois pontos queria dizer Rio de Janeiro, três era Santos e um Petrópolis.




Não da pra ter rádios em Mercúrio, sabe, porque a interferência seria muito alta por causa das Torres. Elas servem pra captar a energia do campo magnético do planeta, que é umas trezentas ou quinhentas vezes o da Terra, e a transformam automaticamente em eletricidade. Foi o Tesla quem inventou elas, cinquenta anos atrás. Tem duas dessas nas montanhas, ao longe. Elas ainda funcionam? Água, atmosfera... essas coisas só existem por causa das Torres. Elas são o pulo do gato. Estupidamente baratas, fáceis de construir e de quebra ainda dão energia inesgotável. Mas acredite em mim, a vida em outro planeta é como morar num bistrô. Não é tão ruim, é até que boa, mas continua sendo um bistrô.

E já vou avisando: Esqueça a metalinguagem. Aqui não tem essa de "leitor" ou "autor", essas coisas não existem. O que existe é o Pedro, a Enrietta e eu. Essas coisas que você está lendo não são só um monte de palavras. O nome disso é dicionário.

É impossível distinguir uma boa história de fantasia ou de ficção-científica de crianças correndo descalças na rua. Isso é uma lei da literatura, e isso quer dize que ela se aplica a todos os casos, tirando algumas exceções.





Disquei ①, ①, ①.

Uma das coisas que "a luz da geladeira" é, dentre tantas, é o nome de uma sociedade secreta. Foi o que descobri em minha longa conversa com o Imperador Dom Pedro II. Explico: O primeiro par de telefones do Brasil foi instalado em 1855, secretamente, a mando do Imperador, e ligava a Quinta da Boa Vista, o palácio real, à lendária "Casa de Carnes Colonial", seu prostíbulo predileto. Dai em diante as linhas telefônicas brasileiras foram estendidas, emendadas e remendadas incontáveis vezes, em outras palavras, elas nunca foram completamente substituídas.

No fim eram só duas latinhas, uma de leite e a outra de molho de tomate, ligadas por milhares de cadarços amarrados um ao outro, atravessando o tempo e a vida láctea. Eu só precisava do número, e eu tinha.

Por isso que todo telefone, pager, fax e celular está indiretamente e inevitavelmente ligado ao telefone da Casa de Carnes Colonial.



Eu queria descobrir tudo o que tinha pra ser descoberto sobre a luz da geladeira, e eu tinha bastante tempo livre pra isso. Infelizmente meus recursos limitavam-se  uma piscina porcamente mobiliada, meio sanduíche, um lápis e uma linha direta pro bordel do Dom Pedro II. Eu precisava estar preparado se quisesse partir numa aventura. Fui procurar itens para botar no meu inventário. Encontrei Enrietta dormindo no pé da única árvore no mirante, e Pedro lustrando seu estilingue, apelido pra uma espingarda remington calibre 64, na sombra da mesma sombra. Ele carregou a arma, apontou pro balão, atirou e errou. O estampido acordou sua irmã, que tomou seu brinquedo. Numa centena de quilômetros, eu, ela e ele fomos os únicos a ouvir o estampido.




Nenhum comentário: