segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Outra versão, originalmente de agosto de 2013

O planeta é Mercúrio. Estão à mesa Orson e Carter, jogando cartas diante da lareira. Neva terrivelmente lá fora. A sala é pequena e confortável, mobiliada de luminárias e caças empalhadas, com carpete azul, livros na estante, papel de parede listrado e um retrato da senhora Clarke sobre uma mesa lateral. Um impala preto aterrissa no quintal da frente. Penpal¹, o mordomo de Monte Sul, cujas habilidades frequentemente se equiparam ao poderio pagão das divindades hindus, de longe onisciente, insigne enxadrista e mestre dos suflês, atende a porta. Surgem Professor Rebimboca e o Inspetor Schultz, o primeiro em terno transpassado, de perfeito corte e caimento, e o segundo num par de botas clark kent de couro autêntico, milimetricamente engraxadas pelo melhor robô-jornaleiro de Bent Street. Penpal pendura os casacos e se teletransporta de volta para seus afazeres.

O Inspetor irrompe pelo chalé de madeira, irreverente, elegante e manco de uma perna ele se senta na exata poltrona junto ao fogo, onde faz reverências e pendura o chapéu. O bigode dispensava demais formalidades.- É com prazer que apresento-lhes Professor Rebimboca, de Banana ba Rustemburg, meu mais novo companheiro de viagem.

- Um heresiarca de Umqombothi, em minha própria casa? - Carter verteu em grande entusiasmo, e cumprimentou-o com sincera admiração. Em contrapartida Orson, desentendido dos estudos semíticos do binômio de Neilman e um mero principiante em matéria de hebraico e mitologia clássica, estendeu-lhe um breve e prosaico aperto de mão, o qual o cientista do leste europeu respondeu com seu mais amarelo sorriso. Muito prazer em conhecê-lo, Professor. Meu nome é Walt Adamastor Wells, mas pode me chamar de Carter. Sim, confesso que já fui um fã dos The Creamberries. Por favor, queira sentar-se. Devem estar famintos! Mas pra onde foi Penpal, aquele paspalhão quadrático de meia-tigela?

- Cá estou, Patrão Wells: - respondeu a voz de lugar nenhum, surpreendendo os convidados não familiarizados com a etiqueta ontológica do primeiro e único mordomo cento-e-um por cento metafísico - Em toda parte e em parte alguma, dentre elas o porão, preparando os aposentos chambre d'ami de nossos hóspedes com banheira quente e vista para o mar. Perdoem meu descuido, senhores, servirei o café imediatamente.

Penpal fecha os olhos e se materializa na despensa. Ele sacode o nariz e sobre a bandeja surgem quatro xícaras, o bule, os pires e o açucareiro. Ele acerta o penteado bowie no metal espelhado da geladeira, e antes de cruzar a porta vai e vem acaba prevendo o futuro em que esquecia-se do leite, e portanto tratou de pegá-lo antes que isso acontecesse. Assim num passe de mágica ou fissão nucelar os convidados são servidos de bolo e de chá.

Tipógrafo grisalho e tabelião, o retrancado Citizen Orson, mantedor dos velhos costumes de coar e de ferver, fintou a bebida fantástica num misto de ceticismo e desconfiança. Era católico do tipo que escova os dentes religiosamente três vezes ao dia, de modo que se recusava a acreditar em qualquer milagre que não os seus. Ademais essas maricagens feito chá e culinária esotérica recordavam seu primeiro casamento, coisa que muito o desagradava. Gordo, rubro e atrapalhado, por debaixo da mesa ele adicionou a xícara uma dose escocesa de scotch, e remendou pela tangente: - O que o traz ao campo, Inspetor?


Bent Street. Era um fim de tarde sépia nos becos londrinos da capital Moksha quando Schultz pede um café com espaguete num panucci de esquina, de frente para o capitólio. Estivera atrás de pistas do caso Listerdale, e até interrogou um suspeito ou dois, contudo naquele dia em particular a boa sorte não estava ao seu lado. Desceu a rua, lustrou as botas e comprou um jornal. Entrou na tabacaria, uma fisionomia familiar fumava no balcão. O último trem para Rama partira a um hora, e o professor de linguística em Trilliam College, Archibald Rebimboca, não havia embarcado (Pelo infeliz infortúnio de um relógio sem corda). O Inspetor reconheceu a cartola sobre o rosto magro e nariz pontudo, talvez de um artigo no Calcutta The Telegraph, e ofereceu transporte para seu congresso em Yukam. Ele agradeceu a gentileza, quis contribuir com os gastos do combustível e não precisou insistir. Abasteceram e partiram.- Já havia escurecido quando avistamos a tempestade - concluía o Inspetor. Diziam no rádio que a nevasca, "a maior desde o inverno de 76", derrubou as linhas telefônicas e bloqueou as estradas -, mas por sorte lembrei-me da fazenda Wells e seus sofás chesterfield - e tomou mais um gole.



- Coronel Mostarda, com a chave inglesa na sala de jantar.

O leitor atento não saberia dizer como ou quando pode o frio adentrar despercebido e instalar-se no casebre, nem tampouco por que uivavam os coiotes numa noite sem luar. Orson verificava a solução no envelope. Investigavam a mansão no alto da colina num jogo de gato e rato atrás dos assassinos de Mr. Boddy, e mais uma vez, depois de cinco partidas consecutivas, o Inspetor provou-se correto em seu palpite.

- Schultz, seu bastardo filho da mãe! - bradou Orson, praguejando grosserias de baixo calão - Pro inferno com esse jogo de filisteus!
Carter riu.- Nunca subestime o faro dedutivo de um detetive - dizia, embaralhando as cartas. A energia caiu e os rádios haviam parado de funcionar. Penpal trouxe lampiões do celeiro, tosquiou ovelhas e tricotou ponchos, e enquanto assava biscoitos na cozinha os cavalheiros se entretinham como velhos garotos na sala de estar, bebendo chocolate e contando histórias de fantasmas.

- Interessante observar o hominum colorati dos personagens - ponderou o Professor em uma de suas poucas falas nesse conto - De fato, "Dona Violeta", "Srta. Rosa" e "Professor Black" são morfismos à altura de Berkeley e Padavona, um notável protótipo de associação das cores como metáfora para os peões.

Orson, frustrado por ter hipotecado a Avenida Atlântica, não mediu esforços para entender o que o Professor quis dizer com aquilo. Verdade seja dita, raramente o fazia. Deu de ombros. Bebeu o gim e arqueou as sobrancelhas. Mal sabia ele, mas algo no discurso do Professor foi o estopim para que nos confins inexplorados de seu cérebro uma improvável combinação de porcentagens etílicas em cadeia provocassem esta espécie de "arrebatamento cognitivo", que o fez arrotar - Observação: tal fenômeno não deve ser confundido com outro apresentado mais adiante, pois afora a repetição de temas da cognição humana, eles não guardam qualquer relação no enredo (N.T.) - Desculpou-se. A locomotiva psicossomática apitava por sua mente, passando em sua trajetória de caos por trilhos de memórias há muito esquecidas, uma das quais emergiu aleatoriamente à consciência num refluxo gastro-poético de pura inspiração. Quando Orson se deu conta lá estava ela, na ponta da língua, dizendo:

"Henry se despertó de la pesadilla en el asombro acecho. 'Llama a la policía, Conserje Verde! Hay algo malo en el lado derecho!'".

O Inspetor contêm sua jogada, acompanhado pelos outros igualmente instigados pela estranheza do texto. No sofá, de costas pra janela, o Professor cobre o espirro com um lenço e se apressa em trocar para a cadeira rente a estante, temeroso por uma corrente de ar. Carter indaga a autoria da citação, surpreso pela recente manifestação artística de seu amigo sempre tão exatóide. E então Orson reclinou-se na espreguiçadeira para recordar a longínqua Steinhäger na remota década de 50, na época em que ainda tinha namoradas e não lhe faltava cabelo, e vice-versa. Coçou a barba e tomou fôlego. Essa era a sua vez de contar uma história de terror.


Num desses brechós, às dezenove horas de uma terça-feira, a sra. Gale limpava as vitrines e o jovem Citizen era o último cliente, procurando trocados entre os casacos. Um deles era um sobretudo Doyle, manchado e sem botões, com algo no bolso interno além de grampos e moedas. Um livreto de seis páginas amarelas dobradas, quase inteligíveis, não maiores que uma carteira de cheques. O sumário listava três contos, dois dos quais a tinta se apagara e outro incompleto antes da sétima página final, rasgada fora. Não restava menção a autor ou editora afora o título em caixa alta, "INVENTOS", e o prefácio em espanhol, assinado por algum jornalista Cartel Spenta. Questionado sr. Franque não soube precisar quem nem quando venderam-lhe o casaco, e posteriormente confessou com certa sinceridade que não se recordava de tê-lo adquirido.

O professor puxou um fósforo e acendeu o cachimbo. A terceira historieta, recontada por Orson nessa digressão alcoólico-hipnótica, descrevia as desventuras de George trancado "num teatro vazio no limiar da meia noite" e como um terrível acaso linguístico o conduziu a um banheiro masculino ligeiramente menos real, dividido entre o mundo que conhecemos e o chamado Lado Direito.

O narrador segue o garoto através do labirinto por trás do espelho, revelando uma terra perdida governada por sua própria física dos sonhos, indiferente aos costumeiros dogmas da relatividade e gravitação, segundo a qual, nas palavras do autor, "tempo e distância constituem noções tão sólidas quanto pudim de ameixa". Aqui fica claro que o poeta havia de ser fascinado por estes jogos de sombras, escadas de Escher, charadas e adivinhações que distraem as crianças menos inteligentes e os apreciadores da literatura menor, munido, no entanto, de noções matemáticas distintas, bastante crípticas, sofisticadas demais para acreditar que tenham sido concebidas por um romântico qualquer.

Noite adentro o pequeno George desbravou as masmorras secretas ocultas na latrina, usurpou o trono da rainha de copas, cruzou os oceanos do norte, libertou do exílio as Deusas ibéricas (e eventualmente desposou as mais formosas), inventou o francês e se mijou de rir com a dança invertida dos demônios gêmeos. 
Foi no porão de uma estalagem abandonada em Providence Hill "En la misma noche, muchos años después" - numa clara alusão ao "The Night of a Thousand Years" de S. Taylor Coleridge - que os emissários do Rei George descobriram uma antiga arca enterrada sob a areia no fundo de um poço.

É fato que Providence, a factual cidade, uma colônia irlandesa do início do dezoito, foi construída sobre túneis e cavernas subterrâneas, e que antes disso já foi um porto de piratas. Mas em sua equivalente ficcional existia uma arca, entalhada na madeira de escritas antediluvianas indecifráveis e imagens sobre-humanas. George abriu a fechadura e olhou para dentro do baú, despertando a criatura de seu sono milenar. Ele corre para a saída, horrorizado, e fecha a porta no fundo da toca do coelho atrás de si, determinado a nunca mais voltar.

Amanhece ao fim da sexta página, quando o zelador Russel, um beato praticamente cego "quase sempre resfriado", vestido em seu macacão verde e com os cabelos num rabo de cavalo pelo boné do mickey mouse, encontra o garoto dormindo sobre o assoalho imundo - perfez Orson com um pigarreio - o grimório numa mão e a gramática na outra. O que vem a seguir é o que lhes contei antes, e isso é tudo.


- Bom Mr. Orson, esta é uma história em tanto. Nunca ouvi nada parecido. Um notável exemplo do poder imaginativo da ficção - disse o Professor, visivelmente desacomodado com o rumo da conversa

A sala mergulhou num silêncio que perdurou por alguns instantes, durante os quais as labaredas estalaram na lareira enquanto sua luz tremeluzente serpenteava sobre os óculos pesados do Professor, que rubricava notas em seu diário. 

 - É como se diz por ai: Longum iter emensus, mendacia longa reportat. Fallacia alia aliam trudit!

Os demais concordaram, elegendo o brilhantismo de um provérbio em latim como a palavra final da discussão. Todavia Schultz, envolto em seu vão raciocínio, não deu atenção ao professor, aos biscoitos, nem mesmo para as gotas de chocolate em cima dos biscoitos, porque estava determinado a decifrar o lirismo macabro por trás do menino George e a lenda do banheiro impossível, e agora seu sexto sentido "aranha" investigativo apontava para um nova pista.

O Inspetor lembrou-se dos Irmãos Bacalhau e o grande roubo de 77. Lembrou-se dos fora da lei Danny Dinamite e Ketchup Kid e a maior perseguição policial jamais vista pela cidade do Rio. Lembrou-se de Chips, o lendário Sunset Ride da BR-102, seu amigo, parceiro e mentor na patrulha rodoviária, e de como uma colt pacificadora estourou seus miolos no cruzamento da Sundance com a Cassidy. Também lembrou-se de uma véspera de natal num McDonald da estrada. Chips dizia que podia julgar um homem só pela maneira que ele fuma seus cigarros. - Vê este palhaço, Jr.? - perguntou o tira de meia idade, apontando o milk-shake de cinco pratas para o boneco sorridente de papel na entrada - Ele é um sacana, um pervertido masoquista filho da mãe que come criancinhas com picles postiços e seu molho especial antropofágico doentio - parou um instante para admirar seu hambúrguer feliz e piscar para a moça do balcão. Junior Schultz polia o distintivo com um guardanapo - Nunca confie num palhaço, Jr. - concluiu ele, ainda de boca cheia - Nem em advogados, nem em professores. Agora me passe as batatas fritas.

Aquilo, pensou, tinha que ser um sinal. Ou mais que um sinal, um alerta de um espírito sussurrante, "Como a Força do Guerra nas Estrelas". Então ele olhou para a fumaça espiralada do cachimbo e soube sem pestanejar, tão certo quanto o próprio Chips que-Deus-o-tenha estaria, que algo ali não cheirava bem.

O professor mentia.

Este, tendo baixado a guarda para apontar seu lápis número 2 preto com borracha na ponta, seguro de que havia dado fim ao debate, foi tomado de surpresa pelo movimento do Inspetor, que percebendo a brecha nas linhas inimigas investiu para o ataque, na lata - Conte-nos, Rebimboca, o que realmente sabes acerca do aparente problema do Lado Direito?

Touché. A atenção voltou-se para o professor. Estava cercado e Schultz declarara xeque, e ainda que guardasse um mal pressentimento pela questão, como um bom jogador Archibald sabia reconhecer uma derrota, e foi o que ele fez.

Esse foi seu grande erro número um.
- Curdistão, 3.000 a.C.: Nove elefantes brancos surgem no deserto.








Acidente. No piscar de olhos de um milissegundo eletroquímico.

Os 9 Elefantes Brancos, um mito árabe ancestral que enuncia o pacto do rei Eshtar da Suméria com as bruxas do leste distante pela vida eterna, bem como o Tratado de R. Burroughs -  Holistic University of the Temples of Syrinx, "Tratado ARP 2112 sobre o Oitavo Portal", Nova Inglaterra, 1869 - um estudo de Terrya Rajiv dos muros de Constantinopla e as luas marcianas, além é claro dos diversos autos de Dante, Cervantes, Borges e Gil Vicente e tantas outras obras de ciência questionável, compõe a extensa bibliografia do volume único "Otras Inquisiciones de la Superficie Estrictamente Inconmensurable", um compêndio dos ensaios de Martín Tallaferro publicados no El Lechero. O livro foi organizado por Arthur Archie na melhor fase do The Archie Show e reunia uma coleção de cartas de Tallaferro a correspondentes literatos com apêndices de seu diário pessoal, além é claro de seus textos publicados no El L. até aquele fatídico ataque do coração.

Como era de se esperar, "Inquisiciones" foi um fracasso de crítica, expatriada com paus e pedras pela aristocracia editorial idiota da época, e portanto nunca chegou a ser publicada em larga escala. A Tribuna de Eddignton chegou a classifica-lo como "quiçá a pior obra póstuma já escrita sobre um cronista morto: uma infusão amarga de substantivos próprios que só fazem evidenciar a natureza pseudocientífica da fantasiada e ficção de Lewis e Carroll"A primeira e última remessa perdeu-se eventualmente nas falências da redação até o incêndio de 69, quando os exemplares remanescentes desapareceram nas mãos dos militares para serem trancafiados nos arquivos da ditadura.

- Por uma incrível coincidência de sobrenomes e códigos postais, chegou ao meu antigo escritório em Ottery, muitos anos atrás, um exemplar perdido de Inqueries, uma cópia manuscrita traduzida para o inglês. Robusto, com mais de mil páginas de papel barato e tinta ordinária.

Burtt é um americano médio do século XX, sentado em sua poltrona


Ou quem sabe com Cherry, a garçonete paranormal loira viciada, segundos depois de saltar do oitavo andar e logo antes de chegar ao térreo.

"Ex ore parvulorum veritas", latim para "A verdade sai da boca das crianças".

Como quem percebe num tropeço um botão a menos despregado da camisa, Pratt, Cherry, George e outros mais igualmente acometidos por este inexplicável súbito lapso de razão. De repente, por acaso ou não, se perceberam da verdade latente, esquecida ou ignorada pela percepção humana, a verdade de que havia algo de errado com o Lado Direito. Errado como uma caneta num porta-lápis, como um par de meias de pés e cores diferentes. Um erro absurdo, ilógico e indescritível.

- Alto lá, Professor – indagou Wells - Está sugerindo que o que chamam de "Lado Direito" seria, por assim dizer, uma projeção da realidade, tal como uma quarta dimensão? E se isso for verdade, que alguns de nós descobririam-se capazes de percebê-la, ao passo que para George, devido a algum tipo de anomalia espaço-temporal, foi possível atravessar de uma margem para a outra?
Os cavalheiros pensaram por um instante.
- Você diz, como no videoclipe do A-Ha? Aquele com o Patrick Swayze?
- Não Orson, é claro que não! - interveio o Inspetor, contrariado – Aquele não é o Patrick Swayze, é o vocalista.


- Acabei de voltar da quarta dimensão, e se me lembro bem, ela em nada se assemelha com a discrição do autor. Acredito que o que as variadas fontes chamam de “lado direito” nada mais é que o “lado direito” propriamente dito.



- Vamos acabar com isto de uma vez por todas. Penpal, reveja seus cálculos e mostre-nos o que há de errado com o Lado Direito.
                    

- Talvez não seja uma boa ideia, Wells. O que nos garante que essa torradeira quadrática não vai errar uma vírgula e fritar nossos cérebros. Além do mais, não sabemos o que nos aguarda do outro lado.


- Como queira, Patrão.
Três vezes o mordomo bateu os calcanhares. A lógica se dobrou, o teto tremeu, os lobos uivaram e sobre a mesa uma quinta xícara passou a existir.


- O que significa isso?
- Significa que não estamos sozinhos, Senhor Orson. Há mais alguém nesta casa.
- O que foi que ele disse, Wells?

- Isso é loucura! Estamos completamente sozinhos, ilhados no meio da nevasca, centenas de quilômetros do posto de gasolina mais próximo!

Penpal fez uma pausa, e como quem lida com uma criança pré-escolar, elucidou.

- Perdoe-me, Professor Rebimboca, mas de onde a criatura vem "tempo e distância são noções tão sólida quanto pudim de ameixa". A propósito, o que vão querer para a sobremesa?

Uma gota de suor escorreu pelo rosto rubro de Wells, que impeliu contra a mesa.
- Basta! Revele-o, Penpal! É uma ordem!
- Perdoe-me, Patrão, mas receio que não possa fazer isso. Sinto muito, mas ele está além de minhas capacidades.

Um desespero quase humano transpareceu pelo rosto branco de Penpal.

- Merda! O que faremos agora?

Teriam dito que poder-se-ia ouvir - ou qualquer que seja o pretérito do indicativo (N.T.) - o bater de um porta no sótão. Penpal desapareceu nas ondas de rádio, afetado pela presença aterradora do desterro. O Inspetor engatilhou seu revólver e fez sinal para que ficassem quietos. Ele subiu a escada espiral no canto e ganhou a antessala, que por sua vez se bifurcava em três quartos nos pontos cardeais. Ele parou diante da bendita porta do norte, girou a maçaneta de metal, tomou distância e golpeou-a com um chute. - Quem está ai?!


Um raio cai no descampado e ilumina o fim do corredor vinte passos a frente, revelando uma janela semiaberta por onde as cortinas se esvoaçavam na ventania noturna. Schultz podia sentir a presença, esgueirando-se tetrapódica disforme pelas sombras invisíveis. Podia senti-la aproximando-se sorrateira na penumbra. Era apenas ele e sua pontaria contra o intruso extraterrestre, intangível, tão antigo que o próprio tempo o esquecera. Tomado por um terror inominável, Schultz sucumbia a influência da criatura, cada vez mais perto. Foi quando ouviu o sotaque fluminense em sua mente: "Use a Força, Júnior. Use a força". Ele só precisou fechar os olhos e contar até três.- Essa é por você, Sunset - e o gatilho mais rápido do oeste descarregou seis balas ininterruptas contra o assombro das trevas. O espectro foi ao chão, ferido pelos feixes de luz do disparo e gritando de dor, o que deu ao Inspetor tempo para alcançar a porta de volta para as escadas.

¹ Penpal é a cara do Michael Caine.



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O planeta é Mercúrio. Estão à mesa Orson e Wells, servidos de gim. Neva terrivelmente lá fora. A sala é confortável, mobilidade de luminárias e caças empalhadas, com carpete azul, estantes na parede, livros nas estantes e um retrato da senhora Clarke sobre a lareira. Um impala preto aterrissa no quintal da frente. Penpal, o mordomo de Monte Sul, cuja onipotência ontológica quase se compara ao poderio pagão das divindades hindus, insigne enxadrista e mestre dos suflês, atende a porta. Surgem Professor Rebimboca e o Inspetor Schultz, ensopados da cabeça aos pé, o primeiro em terno transpassado, de perfeito corte e caimento, e o segundo num par de botas clark kent de couro autêntico, milimetricamente engraxadas pelo melhor robô-jornaleiro de Bent Street.

O Inspetor irrompe pelo pequeno chalé, manco e elegante ele se senta na poltrona junto ao fogo, cruza as pernas e pendura o chapéu. O longo bigode dispensava formalidades. - É com grande prazer que apresento-lhes Professor Rebimboca, de Banana ba Rustemburg, meu mais novo companheiro de viagem - Wells verteu em grande entusiasmo. - Um heresiarca de Umqombothi! É um prazer conhecê-lo, Professor! - dizia, conquanto Orson, iletrado nas artes sacras do binômio de Neilman e um principiante em matéria de jazz e judaísmo, o cumprimentou com um breve e prosaico aperto de mão, que o professor respondeu com seu mais amarelo sorriso. - Por favor, queira sentar-se. Devem estar famintos! - e deu por falta de Penpal - ora essa, pra onde foi aquele paspalhão quadrático de meia-tigela?

- Cá estou, Patrão Wells, - disse a voz de lugar nenhum, surpreendendo num sobressalto os não familiarizados com a serventia - em toda parte, em parte alguma, e em muitas outras, como manda a tradição. Entre elas o porão, preparando os aposentos chambre d'ami de nossos hóspedes com banheira quente e vista para o mar. Perdoem meu descuido, servirei o café imediatamente.

Penpal fecha os olhos e se materializa na despensa. Ele sacode o nariz e sobre a bandeja surgem as xícaras, o bule, os pires e o açucareiro. Também previu o futuro em que o professor o advertia por ter se esquecido o leite - "Três colheres!", e portanto tratou de pegá-lo antes que isso possivelmente acontecesse. Num passe de mágica ou fissão nucelar, os convidados são servidos de bolo e de chá. Tipógrafo grisalho e tabelião, o retrancado Citizen Orson, mantedor dos velhos costumes de coar e de ferver, fintou a bebida fantástica num misto de ceticismo e desconfiança, apesar de familiarizado com a metafísica de suas visitas à Monte Sul. Adicionou ao seu chá uma dose hospitalar de gim, e remendou pela tangente: - O que o traz ao campo, Inspetor?

Bent Street. Era um fim de tarde sépia nos becos londrinos da capital Moksha, Schultz pede um café com espaguete num panucci de esquina, de frente para o capitólio. Estivera à procura de pistas do caso Listerdale, e até interrogou um suspeito ou dois, contudo naquele dia em particular a boa sorte não estava ao seu lado; Desceu a rua, o homem de lata lustrou suas botas e ele comprou um jornal, entrou na tabacaria, uma fisionomia familiar fumava no balcão. O último trem para Rama partira a um hora, e o professor de linguística em Trilliam College, Archibald Rebimboca, não havia embarcado - pelo infeliz infortúnio de um relógio sem corda. O Inspetor reconheceu a cartola sobre o rosto magro e nariz pontudo, talvez de um artigo no Calcutta The Telegraph, e ofereceu-lhe transporte para seu congresso em Yukam. Ele agradeceu a gentileza, quis contribuir com os gastos do combustível e não precisou insistir. Brindaram e partiram. - Já havia escurecido quando avistamos a tempestade - concluía o Inspetor. Diziam no rádio que a nevasca, "a maior desde o inverno de 76", derrubou as linhas telefônicas e bloqueou todas as estradas -, mas por sorte lembrei-me da fazenda Wells e seus sofás chesterfield, e aqui estamos - suspirou o Inspetor, aliviado, e tomou mais um gole.



- Coronel Mostarda, com a chave inglesa na sala de jantar.
Orson verificou a solução no envelope. Fazia tempo que rodavam a mansão no alto da colina como gato e rato atrás do assassino de Mr. Boddy, rolando dados sobre o tabuleiro num total de cinco partidas distintas, e mais uma vez o Inspetor provou-se correto em seu palpite. - Schultz, seu desgraçado filho da mãe! - bradou Orson - Pro inferno com esse jogo de bastardos!
- Nunca subestime o faro dedutivo de um bom detetive - Riu Wells, reembaralhando as cartas.

Eu não saberia dizer como ou quando o frio latente adentrou despercebido e instalou-se no casebre, tampouco por que uivavam os coiotes numa noite sem luar. O rádio deixou de funcionar e as quedas de energia tornaram-se uma surpresa constante, mas nada que comprometesse uma estadia prazerosa e cortês. Penpal trouxe os lampiões do celeiro, tosquiou ovelhas e tricotou ponchos, e enquanto assava biscoitos na cozinha os cavalheiros se entretinham como garotos na sala de estar com o vinho quente, histórias de fantasma e baralhos incompletos.

- Interessante observar o dito hominum colorati dos personagens - ponderou o Professor girando sua taça - De fato, "Dona Violeta" e "Reverendo Black" são morfismos à altura de Berkeley e Padavona, um notável exemplo do arquétipo das cores como metáfora para os peões.

Orson, ainda frustrado por ter hipotecado a Avenida Atlântica, não entendeu o que o professor quis dizer com aquilo. Deu de ombros. O que veriam a seguir seria ele beber o gim e então franzir levemente uma sobrancelha. O que não sabiam era que nos confins inexplorados de seu cérebro uma improvável combinação de porcentagens etílicas em cadeia provocaram um perigoso acidente cognitivo, comparável ao descarrilamento de um trem voador, que o fez arrotar. Desculpou-se, envergonhado. Mas a explosão psicossomática ecoava por sua mente, despertando em seu curso uma memória há muito esquecida, a qual emergiu aleatoriamente à consciência no piscar de olhos de um milissegundo eletroquímico. Lá estava ela, na ponta da língua, uma lembrança redescoberta por acaso no fundo da gaveta. Notou, sim, uma sutil relação com o discurso do professor (que lhe servira de estopim para seu lampejo filosófico), uma palavra ou duas, e quem sabe um verbo no particípio, mas que divergiam assustadoramente em seu conteúdo. Dizia:

- George se despertó de la pesadilla en el asombro. En vano trata desesperadamente de comenzar con las manos desnudas azulejos de la pared. "Llama a la policía, conserje verde. 'S algo malo en el Lado Derecho."

O Inspetor conteve sua próxima jogada, estupefacto, acompanhado dos outros com a mesma reação, instigados pela singularidade ímpar do texto. - O que acaba de dizer, meu caro Orson? - Indagou Wells, irônico, certo de que tratava-se duma citação de revista em quadrinhos. Orson, apercebido do tom altivo de seu anfitrião, se reclinou por um momento para recordar a longínqua Steinhäger na remota década de 50, quando ainda tinha namoradas e não lhe faltava cabelo, ou vice-versa. Era sua vez de contar uma história de terror.

Pois certa vez num desses antiquários - Terça, dezenove horas, o sr. Franque limpava as vitrines e o jovem Citizen era o último dos clientes, procurando não se sabe o que entre os casacos. "Trocados, para o fliper". Um deles era um sobretudo Doyle, manchado e sem botões, mas isso, amigo leitor, não é tudo. Havia mais alguma coisa no bolso interno além de grampos e moedas: Um livreto, de cinco, seis páginas amarelas, dobradas, quase inteligíveis, não maiores que uma carteira de cheques. O sumário listava três contos, dois dos quais a tinta se apagara com o tempo, e outro inacabado antes da sétima página final, desaparecida. Não restava menção a autor ou editora afora o título em caixa alta, "INVENTOS", e o prefácio em espanhol, assinado por algum jornalista da graça Cartel Spenta. Questionado sr. Franque não soube precisar quem vendou-lhe o casaco, e até confessou com sinceridade que não se recordava de tê-lo adquirido.

O professor puxou um fósforo e acendeu o cachimbo. A terceira historieta, recontada por Orson nessa espécie de digressão alcoólico-hipnótica, descrevia as desventuras de George trancado "num teatro vazio no limiar da meia noite" e como um terrível acaso linguístico o conduziu à um banheiro masculino ligeiramente menos real, dividido entre o nosso mundo e o Lado Direito. O narrador segue o garoto através dos labirintos por trás do espelho, revelando uma terra perdida governada por sua própria física dos sonhos, alheia aos costumeiros dogmas da relatividade e gravitação, segundo a qual, nas palavras do autor, "tempo e distância constituem noções tão sólidas quanto pudim de ameixa". O poeta havia de ser fascinado por estes jogos de sombras, escadas de Escher, charadas e adivinhações que distraem as crianças menos inteligentes e os apreciadores da literatura menor, munido, no entanto, de noções matemáticas próprias, bastante crípticas, completas demais para se acreditar que tenham sido concebidas por um romântico qualquer.

Noite adentro o pequeno George desbravou as masmorras secretas ocultas na latrina, usurpou o trono da rainha de copas, libertou do exílio as Deusas ibéricas (e eventualmente desposou as mais formosas), inventou o francês e se mijou de rir com a dança invertida dos demônios gêmeos. Foi no porão de uma estalagem abandonada em Providence "na mesma noite, no mesmo teatro, muitos anos depois" - numa clara alusão ao "The Night of a Thousand Years" de S. Taylor Coleridge - que Rei George descobriu uma arca enterrada sob a areia do fundo de um poço. A factual cidade já foi no passado um porto de piratas erguido sobre túneis e cavernas subterrâneas. A arca metálica foi levada ao castelo de Kubla Khan para que os sacerdotes decifrassem seus símbolos ancestrais. George olhou para dentro do baú, e voltou a fechá-lo o mais rápido que pode. Era tempo de voltar.

- Amanhece ao fim da sexta página, quando o zelador Russel, um beato praticamente cego "quase sempre resfriado", vestido em seu macacão verde e com os cabelos esganiçados cobertos pelo boné do mickey mouse, encontra o garoto dormindo sobre o assoalho imundo - perfez Orson com um pigarreio - o grimório numa mão e a gramática na outra. O que vem a seguir é o que lhes contei antes, e isso é tudo.

A sala mergulhou num silêncio declarado que perdurou por alguns instantes, durante os quais as labaredas estalaram na lareira enquanto sua luz tremeluzente serpenteava sobre os óculos pesados do Professor, que rubricava notas em seu diário. No sofá Wells cobriu um espirro com o lenço, e trocou para a cadeira rente a estante, temeroso por uma corrente de ar perto da janela. - Bom Mr. Orson, esta é uma história em tanto. Nunca ouvi nada parecido! Um notável exemplo do poder imaginativo da ficção - disse o Professor, claramente desacomodado com o rumo da conversa - É como se diz por ai: Longum iter emensus, mendacia longa reportat. Fallacia alia aliam trudit!

Os demais concordaram, elegendo o brilhantismo de um provérbio em latim como a palavra final da discussão. Todavia Schultz, envolto em seu vão raciocínio, não deu atenção para os biscoitos, nem mesmo para as gotas de chocolate em cima dos biscoitos, porque estava determinado a decifrar o lirismo macabro por trás do menino George e a lenda do banheiro impossível, e agora seu "sentido aranha" investigativo apontava para um nova pista.

O Inspetor lembrou-se dos Irmãos Bacalhau e o grande roubo de 77. Lembrou-se dos fora da lei Danny Dinamite e Ketchup Kid e a maior perseguição policial jamais vista pela cidade do Rio. Lembrou-se de Chips, o lendário Sunset Ride da BR-102, seu amigo, parceiro e mentor na patrulha rodoviária, e de como uma colt pacificadora estourou seus miolos no cruzamento da Sundance com a Cassidy. Também lembrou-se de uma véspera de natal num McDonald da estrada. Chips dizia que podia julgar um homem só pela maneira que ele fuma seus cigarros. - Vê este palhaço, Jr.? - perguntou o tira de meia idade, apontando o milk-shake de cinco pratas para o boneco sorridente de papel na entrada - Ele é um sacana, um pervertido masoquista filho da mãe que come criancinhas com picles postiços e seu molho especial antropofágico doentio - parou um instante para admirar seu hambúrguer feliz e piscar para a moça do balcão. Junior Schultz polia o distintivo com um guardanapo - Nunca confie num palhaço, Jr. - concluiu ele, ainda de boca cheia - Nem em advogados, nem em professores. Agora me passe as batatas fritas.

Aquilo, pensou, tinha que ser um sinal. Ou mais que um sinal, um alerta de um espírito sussurrante, "Como a Força do Guerra nas Estrelas". Então ele olhou para a fumaça espiralada do cachimbo e soube sem pestanejar, tão certo quanto o próprio Chips que-Deus-o-tenha estaria, que algo ali não cheirava bem.

O professor mentia.

Este, tendo baixado a guarda para apontar seu lápis número 2 preto com borracha na ponta, certo de que havia dado fim ao debate, foi tomado de surpresa pelo movimento do investigador, que percebendo a brecha nas linhas inimigas investiu para o ataque, na lata - Conte-nos, Rebimboca, o que realmente sabes acerca do aparente problema do Lado Direito?

Touché. A atenção voltou-se para o professor. Estava cercado e Schultz declarara xeque, e como um bom jogador Archibald sabia quando reconhecer uma derrota. Ademais sentia-se convencido a enfrentar sua fobia e assim admitir a verdade, e foi exatamente o que ele fez.

Esse foi seu grande erro número um.
- Curdistão, 3.000 a.C., nove elefantes brancos surgem do deserto.


Os 9 Elefantes Brancos, o mito árabe que descreve o pacto do rei Eshtar da Suméria com as bruxas do leste distante pela vida eterna, assim como o Tratado de R. Burroughs - "Tratado ARP 2112 sobre O Oitavo Portal", Holistic University of the Temples of Syrinx, Nova Inglaterra, 1869 - um estudo de Terry Rajiv dos muros de Constantinopla e sua suposta conexão com as luas marcianas, além dos autos de Dante e Gil Vicente e tantas outras obras de ciência questionável, compõe a extensa bibliografia de "Otras Inquisiciones de la Superficie Estrictamente Inconmensurable", um compêndio dos ensaios de Martín Tallaferro publicados no El Lechero e de suas cartas a companheiros literatos ao longo de uma vida de regular correspondência e trabalhos editoriais, mas que nunca chegou a ser publicado em remessas de larga escala e que eventualmente se perderam nas falências da redação até o incêndio de 69, quando os poucos exemplares remanescentes foram apreendidos pela inquisição militar e trancafiados para sempre nos arquivos da ditadura.

- Um dos quais, por uma incrível coincidência de sobrenomes e códigos postais entre eu seu destinatário original, chegou ao meu antigo escritório em Ottery há muitos anos atrás. Robusto, com mais de mil páginas de papel barato e impressão ordinária, cheio de erros de tipologia e tradução. É verdade que não me aprofundei em minha despretensiosa leitura no fundo do bonde a caminho do correio, mas ainda me lembro de anotações manuscritas interpostas entre os parágrafos e margens das folhas, e por mais que a maioria fosse indistinguível de rabiscos pré-escolares, a outras eram claramente ideogramas ocultistas, fórmulas de alquimia e astronomia antiga.


Butt é um americano médio do século XX, e estranha quando entre um canal e outro. Pensou em telefonar para a companhia de TV, mas só pensou. Pensar não era seu forte. Com o comediante, o vizinho bêbado de Melissee, não foi diferente. enquanto surrava a esposa com o texto de esquetes. Ou quem sabe com Cherry, a garçonete paranormal loira viciada, segundos depois de saltar do oitavo andar e logo antes de chegar ao térreo.

"Ex ore parvulorum veritas", latim para "A verdade sai da boca das crianças".

Como quem percebe num tropeço um botão a menos despregado da camisa, Pratt, Cherry, George e outros mais igualmente acometidos por este inexplicável súbito lapso de razão - Que os mais hippies chamariam de epifania, nirvana ou saiyajin, de repente, por acaso ou não, se aperceberam da verdade latente, esquecida ou ignorada pela percepção humana, a verdade de que havia algo de errado com o Lado Direito. Errado como uma caneta num porta-lápis, como um par de meias de pés e cores diferentes. Um erro absurdo, ilógico e indescritível.

- Você está sugerindo que o Lado Direito seria,- faltavam adjetivos para Wells - por assim dizer, um reflexo da realidade, como uma quarta dimensão, e que para George foi possível atravessar de um lado para o outro?
- Você diz, como no videoclipe do A-HaAquele com o Patrick Swayze?
- Não, é claro que não! - interveio o Inspetor, contrariado - Não é com o Patrick Swayze.


- Devo adverti-lo que agir precipitadamente pode ser perigoso. Não sabemos o que nos aguarda do outro lado.

- Como queira, Patrão - três vezes o mordomo bateu os calcanhares, a realidade se dobrou, os móveis tremeram e sobre a mesa uma quinta xícara passou a existir.

- O que significa isso?!
- Significa que não estamos sozinhos, Senhor Orson. Há mais alguém nesta casa.
- O que foi que ele disse, Wells?

Uma gota de suor escorreu pelo rosto rubro de Wells. - Revele-o, Penpal.
- Perdoe-me, Patrão, mas receio que não possa fazer isso.


- Isso é loucura! Estamos completamente sozinhos, ilhados no meio da nevasca, centenas de quilômetros do posto de gasolina mais próximo!

Penpal fez uma pausa, e como quem lida com uma criança pré-escolar, elucidou.

- Perdoe-me, Professor Rebimboca, mas de onde ele vem "distância é uma noção tão sólida quanto pudim de ameixa". Sinto muito, mas ele está além de minhas capacidades.
- Basta!

Teriam dito que poder-se-ia - ou qualquer que seja o pretérito do indicativo (N.T.) - ouvir uma porta bater no sótão, porque de fato ouviram. O Inspetor engatilhou seu revólver e fez sinal para que ficassem quietos. Ele subiu a escada espiral no canto e ganhou a antessala, que por sua vez se bifurcava em três quartos nos pontos cardeais. Ele parou diante da bendita porta do norte, girou a maçaneta de metal, tomou distância e golpeou-a com um chute. - Quem está ai?!

Um raio caiu no descampado e iluminou o fim do corredor vinte passos a frente, revelando uma janela semiaberta que esvoaçava as cortinas na ventania noturna, atrás das quais se escondia a criatura. Schultz pressentiu sua presença, esgueirando-se tetrapódica pelas sombras invisíveis atrás de uma saída, e escondeu-se atrás de um cabideiro. Podia senti-lo aproximando-se sorrateiro na penumbra. Era ele contra o intruso extraterrestre do Lado Direito, e ainda que sua pontaria não falhasse e o chumbo surtisse algum efeito, não poderia enxerga-lo na meia luz. Foi quando ouviu o sotaque carioca em sua mente. "Use a Força, Júnior. Use a força". Schultz agarrou firme o crucifixo em seu peito. Ele só precisou fechar os olhos e contar até três.- Essa é por você, Sunset - E o gatilho mais rápido do oeste descarregou seis balas ininterruptas contra o corredor vazio, fazendo os disparos ecoarem pela fazenda deserta. O espectro foi ao chão, gritando de dor, o que deu ao Inspetor tempo para alcançar a porta e correr de volta para as escadas.



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