quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Fake Tales of São Bernardo

Puxo as persianas, arrasto a porta de vidro e saio. Ta sol, mas não ta quente. A varanda dos fundos da casa do Caio dá direto pro deserto, sem cerca, sem muro, nem portão, só a colina mesmo. Cruzando ela chego na praça cortada pela trilha que leva da rua da feira até uma travessa da Kennedy. No sétimo ano tive que fazer um trabalho sobre "pós-fordismo", que acabou sendo uma cartolina azul-mendigo com fotos imprimidas de Detroit e parágrafos gigantes com letra pequena. Sexta, na última aula de geografia do ensino médio, teve apresentação de um trabalho com o mesmo tema, só que as fotos no cartaz eram daqui mesmo. É que de 90 pra cá, principalmente depois que as montadoras fecharam as portas, quarenta porcento das pessoas foi embora, e a mesma região da onde saiam 9 de 10 carros dirigidos no país, em 2011 é isso ai que eu falei: um deserto.

To indo pra casa tomar banho e trocar de roupa. O celular vibra na mochila. Pego ele, é uma notificação do Pokémon Crater GO. Na quinta série jogávamos uma versão antiga dele nos computadores da biblioteca (quando a bibliotecária não tava vendo). Essa é bem parecida, inclusive nos gráficos toscos, só que funciona com o GPS, o que significa que você tem que andar por ai pra jogar. "DESAFIADO PARA UMA BATALHA VOCÊ!". Ah, e a tradução pt-br é um lixo.

To no meio da trilha. Só eu, e não tem ninguém por perto.
-Filho duma puta.

É um jogador fantasma, ou seja, alguém usando um programa que engana o próprio localizador pra ele achar que o cara ta em outro lugar. Os filhos da puta das cidades grandes às vezes vem pra cá farmar e upar porque acham que os nossos níveis são bem mais baixos que os deles. E são mesmo. Temos menos treinadores, pokémons, sidequests, nenhum ginásio e só um centro, caindo aos pedaços.

Meu Squirtle lvl 7 contra o Graveler lvl 15 dele. Eu podia fugir se quisesse. Mas não, sento no gira-gira e vou pra chincha.

Passados três turnos, ganho a vantagem. Chega uma mensagem no chat. "faz a boa ae q te dou 1 mball". Ah, Masterball. Servem pra capturar Pokémons raros (que por aqui são praticamente inexistentes, e por isso acho que eu deveria estar ainda mais preparado caso um deles um dia aparecesse), e o único jeito de conseguir elas é nas grandes sagas ou comprando com dinheiro de verdade, o que deve ser o caso desse idiota.

Vou tentar uma investida diferente: "asl", pergunto. Ele demora um pouco, mas responde "14, m, sampa". Eu odeio quem fala sampa, mas também adoraria ter esse pequeno conjunto de pixels roxos e rosas com uma letra M feito no paint no meu inventário. Depois de um leve papinho dou surrender na batalha e saio com uma Masterball, uma poção de cura e o msn desse boy provavelmente sub.

To vendo a Kennedy já, só que vou passar pelo Parque dos Pardais, rapidão. O sinal de internet pra celular, assim como o de telefone, é uma bosta, e quase nenhum de nós tem internet em casa (qualquer empresa cobra uma fortuna pra ir instalar, e a mensalidade é pior ainda), por isso eu e os moleques roubamos e compartilhamos as senhas do wifi de cada playboy em cada bairro. Minha lista do wifi tem trezentas senhas decoradas. Como aqui só tem mansão, uma caminhada de dez minutos é mais que suficiente pra atualizar minha lista de podcasts e baixar um torrent inteiro.

O guardinha de moto começa a me acompanhar de longe. Não porque eu seja negro e pobre (mesmo que isso já seja um ótimo motivo), mas porque ele nunca vi um ser humano realmente andando por essas calçadas - exceto talvez babás, passeando com os cachorros e crianças. Fodasse.

Caraca, o sinal ta muito top hoje. Vou aproveitar pra baixar uma playlist nova pra escutar mais tarde na volta. Só preciso de uma sombra pra me livrar do reflexo na tela. Tem a pracinhas dos polícia, com a quadra de basquete vazia, mas se me matarem aqui ninguém vai nem ouvir. Mais pra frente tem um caminhão de laranja parado no meio-fio. Sento na calçada do lado dele.

O nome do fórum é Fake Tales of São Bernardo. É fechado, o que significa que só quem sabe o link exato, e que muda de tempos em tempos, consegue acessar. Começou dia 6 de julho, dois dias depois que uma meia dúzia de bandas entraram no teatro abandonado do Rudge e tocaram all night long (parece que não mora mais ninguém lá em volta, então demorou pra polícia chegar e descer o cacete em todo mundo). Na segunda não se falava em outra coisa nas escolas (não tenha a falsa impressão de que eram muitas pessoas comentando, porque tirando a ETEC as escolas só tem uma sala por ano com no máximo umas vinte pessoas em cada uma). Agora tem o fórum, onde o pessoal troca indicações, 4shareds, vende e troca coisas de instrumentos. Natal passado eu pedi baquetas pros meus pais, mas eles só sobrou uma loja de instrumentos (a UFOS fechou ano passado), e elas eram o preço do aluguel (o preço dos aluguéis cai a cada ano. mesmo assim, não vale o preço dois pedaços de madeira). Mesmo que eles soubessem mexer na internet, onde você acha baquetas por tipo vinte mangos, o frete é o preço de uma conta de luz. Ninguém quer ser carteiro pra entregar duas cartas por rua, e as empresas transportadoras odeiam gastar um dia de serviço pra vira pra cá e ainda ter que pagar o pedágio na rodovia. Fodam-se elas também.

Chego. Agora tá até que bem nublado. A casa começa pela cozinha, onde mamãe está fazendo velas, sabão, sabonete e sei lá mais o que. Gosto quando ela faz as coisas com leite. Acho que quando as quitandas, mercadinhos e vendinhas entraram em extinção, o poder da produção dos víveres voltou pras mulheres, como era antes da revolução industrial. Se quiser posso compartilhar um pdf do livro da Angela Davis sobre isso.

Antigamente, quando tínhamos bandas punk, skinheads, trânsito e presidentes conterrâneos, éramos chamados de "cidade dormitório", mas hoje meu pai só dorme em casa três ou quatro vezes por semana. De resto fica no apartamento que ele racha com outras pais de amigos meus. No Brás, com costureiros bolivianos? Não, ele é publicitário numa agência de publicidade, e o ap em questão é do lado do trabalho dele, na Vila Olímpia.

Da última vez que nos vimos, no jantar em que mamãe preparou uma das galinhas (#traumático) com quiabo da horta, ele avisou que vamos nos mudar. Aparentemente a nova ideia da Prefeitura pra convencer as pessoas a ficarem é te dar o imóvel desocupado dos seus antigos vizinhos. Minha mãe disse que é uma estratégia pra barrar as ocupações (ela é inteligente - fez comunicação antes de eu nascer, e agora tá se formando em Antropologia por correspondência), meu pai deu de ombros e continuou folhando do tablet. Depois reclamou da internet, que era uma droga (mal acostumado), disse que ia comprar na pré-venda quarenta desses chips 4g que anunciam na televisão e subiu pra fazer as malas, porque o fretado já já ia buzinar lá fora. 

Confirmei a notícia com mamãe. Um arquiteto vai dizer se tem como juntar nossa casa com a do lado. "Da esquerda ou da direita?". Da direita. Essa mesmo, o sobradinho com a garagem subterrânea gigante.

Puta que me pariu. 

Subo correndo pro quarto. Enfio as roupas no cesto, tomo uma ducha, e no closet - onde consigo pegar o sinal da padaria na avenida, mando a mensagem pro Caio. Se isso acontecer, teremos o lugar perfeito pra ensaiar com a nossa banda. "Que banda?", ele pergunta.

Tem que ser um nome foda. O nome é a parte mais importante. E daí que ninguém do nosso grupo toca nada - quase nada. Podemos gravar um ep, ir na casa de alguém com internet e botar ele inteiro no YouTube. Caralho, vai ser foda. Tá, o nome. 

-Oasis.
-Que merda cara. Já tem uma banda com esse nome. É aquela que canta Wonderwall.
-Ah.
-E tem que ser algo mais transcendental. Ficção-científica. Tipo aquela série de universos-paralelos.
-E em português. Esse pessoal de bandinha é muito colonizado.
-Pode crer.
Lembro que somos putas fãs de Sasquatch.
-Já sei.
-Já?
-Yep
-Então fala porra.

-"Pé Grande".

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